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domingo, 5 de março de 2017

Brasil o país dos desiguais (texto 1 - aula 3º´s)


Por Pochmann*

A enorme concentração da renda e da riqueza é marca registrada do país. O motivo da perversão distributiva é a correspondente concentração do poder. E, na raiz deste fator, está a fragilidade da democracia brasileira. Em cinco séculos de história, não somamos mais de quarenta anos de regime democrático.

Identificar renda e riqueza extremamente concentradas no Brasil não constitui nenhuma novidade. E dizer que isso representa uma herança secular, de difícil superação, tampouco adiciona algum grau de inovação ao já conhecido atualmente. Mas a compreensão das principais razões que produzem uma repartição tão desigual da renda e da riqueza, bem como sua reprodução nos dias de hoje, pode ser motivo de interesse. Especialmente quando se trata de investigar a viabilidade da formulação de medidas cabíveis para sua superação.

Da colonização aos dias de hoje, a riqueza social tem sido pessimamente repartida entre o conjunto da população. De acordo com o Atlas da exclusão social – os ricos no Brasil (Cortez, 2004), percebe-se a continuidade secular no grau de concentração, desde a data em que passa a haver algum registro contábil da riqueza no país. Ao longo do seu processo histórico, o Brasil percorreu distintas fases: Colônia (1500- 1822), Império (1822-1889), República (após 1889). Mas não houve modificação substancial de seu perfil distributivo. Apesar do aparecimento de novos personagens ricos, que se diferenciaram das famílias tradicionalmente assentadas na riqueza primário-exportadora, protagonizando o capitalismo industrial (1930-80) e a financeirização (em curso desde 1981), a desigualdade de renda permaneceu estável. Uma pequena parcela da população apropria-se de muito, enquanto a maior parte dos brasileiros fica com bem pouco.

PADRÃO EXTREMAMENTE CONCENTRADO

Em síntese, o Brasil caracteriza-se por construir um padrão extremamente concentrado de partição da renda e da riqueza.

Os dados disponíveis e confiáveis indicam a persistência estrutural do jogo da distribuição pessoal da renda e da riqueza, mesmo quando ocorre o aparecimento de novos jogadores. Os 10% mais ricos da população impõem, historicamente, a ditadura da concentração, pois chegam a responder por quase 75% de toda riqueza nacional. Enquanto os 90% mais pobres ficam com apenas 25%. Independentemente dos padrões de desenvolvimento econômico pelos quais o Brasil passou, prevaleceu a estabilidade na desigualdade de repartição da renda e da riqueza entre seus habitantes.

Essa situação se agravou ainda mais com o fim do ciclo de industrialização nacional (1930-1980), quando a fatia correspondente à renda do trabalho na composição da renda nacional encolheu substancialmente. Do final da década de 1970 à metade da primeira década do século XXI, a participação do rendimento do trabalho na renda nacional caiu quase 12 pontos percentuais. Simultaneamente, cresceu a porcentagem relativa às formas de riqueza associadas aos proprietários (lucros, juros, aluguéis, renda da terra).

A concentração da renda e da riqueza é uma marca inalienável do Brasil. De acordo com o Atlas citado, embora o país possua aproximadamente 60 milhões de famílias, 45% de toda a renda e a riqueza nacionais são apropriados por apenas 5 mil famílias extensas.

Esse descalabro – já dissemos – não é algo recente. Pelo contrário, vem sobrevivendo a todas as mudanças históricas: o rompimento com Portugal, o fim da escravidão, a passagem para a República. Vem sobrevivendo também à sucessão dos distintos ciclos econômicos. Tanto os ciclos primário-exportadores (pau-brasil, açúcar, ouro, café, borracha), que se prolongaram até o começo do século XX, quanto o desenvolvimento industrial-urbano subseqüente apenas modificaram as fontes da riqueza, mantendo praticamente intacta a concentração na distribuição dos frutos do crescimento econômico.

Desde 1980, com o abandono do projeto de industrialização nacional, tem avançado no país o ciclo da financeirização da riqueza, que traz em seu bojo o retorno ao modelo primário-exportador de matérias-primas e produtos agropecuários (agronegócios). Da mesma forma que os ciclos econômicos anteriores, o padrão distributivo segue inalterado, a não ser pelo aprofundamento da desigualdade de renda e riqueza. Entre 1980 e 2000, quando o crescimento econômico foi pífio, se tornou geograficamente mais concentrada ainda a presença dos ricos no Brasil. Atualmente, somente quatro cidades (São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte) concentram quase 80% de todas as famílias ricas do país.

Como explicar tal situação? A resposta talvez possa ser encontrada na estabilidade do conservadorismo no poder. Assim como a renda e a riqueza, o poder no Brasil encontra-se extremamente concentrado. Daí porque o país jamais ter vivido alguma experiência revolucionária. Levantes existiram, mas sempre massacrados pelas forças conservadoras. Mesmo a revolução burguesa terminou por não acontecer aqui. E as reformas civilizadoras do capitalismo contemporâneo também deixaram de ocorrer de maneira efetiva. Sem revoluções e sem reformas consideráveis, o padrão distributivo não seria modificado. A passagem de um modo de produção a outro mostrou-se inofensiva ao padrão excludente de repartição da renda e da riqueza.

O DESAFIO BRASILEIRO

Entre nós, a ausência de democracia consolidada parece ser a grande razão do conservadorismo e da concentração do poder. Em seus mais de cinco séculos de existência, o Brasil não contabilizou mais de quarenta anos de regime democrático. Pois é claro que não se pode chamar de democracia o que ocorria durante a fase imperial do século XIX e a República Velha (1889-1930). Tratava-se, isto sim, de um regime censitário, capaz de disponibilizar o voto tão somente para a população masculina com posses e renda: cerca de 1% da população!

Deve-se destacar ainda que o processo eleitoral não era secreto. Somente a partir da década de 1930, o Brasil avançou rumo à consolidação do voto universal e secreto, embora deixando de fora a população analfabeta. Mas, justamente nesse período, sobrevieram duas ditaduras, a do Estado Novo (1937-45) e a do regime militar (1964-85) – bem quando se definiu um novo pacto de poder favorável à industrialização (década de 1930) e quando o país registrou as maiores taxas de crescimento da renda (o “milagre econômico” de 1969-73).

Nos períodos em que autoritarismo predominou, os ricos foram favoravelmente beneficiados, mantendo-se inalterado o padrão distributivo excludente. Os apelos populares e progressistas em favor da melhor repartição dos frutos do crescimento econômico foram marginalizados do núcleo de poder. Nos períodos democráticos, a convergência para o desenvolvimento de um projeto revolucionário ou mesmo reformista foi sub-sumida pela administração das emergências e pelas articulações políticas entre distintos extratos de classes sociais, muitas vezes necessárias à governabilidade. Por conta disso, o encaminhamento das questões referentes à alteração do padrão distributivo ficou em segundo plano.

As ações de governo terminam se direcionando a tarefas de curto prazo, incapazes de alterar a estrutura de concentração dos agregados de renda e riqueza. Reciprocamente, a concentração do poder econômico e político impõe obstáculos profundos à gestão o país. O reacionarismo das elites que concentram o poder tem inviabilizado a concretização de reformas em um ambiente democrático. Na ausência de revolução e reformas, geralmente obstadas pelo conservadorismo, as políticas públicas ficaram no meio do caminho.

* Marcio Pochmann é professor do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas.(CESIT) e Ex- Presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

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